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Eu, a quem o nome foi tirado, inscrito exatamente como O-tal, em fiduciário juízo e no sub-rogado gozo de minhas fragrâncias mentais, lavro o testamento particular que segue adiante: I – Para minha esposa deixo as configurações dos aparelhos da casa; o lado do meu rosto que eu nunca enxerguei; uma esperança que poderia ter sido acesa; e o degrau da escada em que minha sogra está parada. II – Para o meu pai, se ainda estiver vivo na ocasião da minha indizibilidade, deixo o caderno de informações dadas pelos transeuntes dos lugares que perguntei como chegava; caso contrário, este deverá ser destinado ao meu sobrinho, contanto que ele arque com o meu medo de fazer bolinhas de sabão. III – Para minha filha destino os itens a seguir: aquele conselho que vem orientando a humanidade nos últimos 150 anos, mas que para mim não teve utilidade; a qualidade do ar no dia 13/04/2017 na Chácara Planos, município de Carrasco Bonito – TO; o frasco de sol fitoterápico; a impressora 3D que faz águas. IV – Ao filho caçula reservo o barulho do mar preso no meu ouvido esquerdo e a galinha dos ovos de bitcoins, mas desde que assuma a controversa estabelecida com o síndico filosófico acerca do nosso guarda enjaulado. V – Para o meu filho primogênito transmito um sonho que foi realizado na década de 80; o tambor de hospital; e uma sandália muito boa para comprar fazendas, com a condição de que pegue de volta o livro que emprestei a quem o tinha me emprestado. VI – Por fim, ao testamenteiro encarregado de cumprir estes finais-quereres, autorizo o levantamento dos 500 cruzeiros que depositei como caução por ocasião do meu nascimento em janeiro de 1979. Dou, assim, por concluído-me e firmo abaixo a definitivo enquanto.
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(A D A D E)
Com a RD 135
Foi assim que começou tudo isso
Cheiro de óleo impregnado na roupa
Em alta rotação correndo à todaMotor dois tempos, não tinha som mais bonito
A gasolina não era nem um real o litro
Na claridade da lua nas avenidas
A noite era uma passagem só de idaA moto irada cruzava a cidade inteira
Até rua sem asfalto e ponte sem beira
Era toda preta, não tinha nem adesivo
Sem capacete e ninguém ligava pra issoO pistão cantava, o carburador reclamava
RPM pro alto não se pensava em mais nada
Um walkman tocava rock nos ouvidos
E a gente ia jogar sinuca na casa dos amigosTarde da noite, saindo da faculdade
Agora só o que resta é a saudade
É por isso que do guidão eu não solto
Eu prefiro um milhão de vezes ir de motoA RD 135
Pela qual tanta estima ainda sinto
Naquela época me deu tantas amizades
E me cultivou o gosto pela liberdadeHoje eu percorro o Brasil inteiro
Em cada canto faço um amigo verdadeiro
O lugar que eu mais curto é a estrada
E o motoclube já virou a minha casaÉ por isso que de carro eu não gosto
Eu prefiro um milhão de vezes ir de moto -
Eu sou a moeda
pela qual minha alma negocia com o meu corpo.
Eu sou o preço
em que cedo ao meu próprio suborno.Sou quem traduz a própria língua;
a semente que grita
à época da colheita esquecida;
no susto, a minha expressão distraída.Sou o objeto do qual me desfaço;
a voz presa na escritura;
o sentido contrário dos meus passos.Eu, encontro de apenas um indivíduo
— com quem me confesso e a quem conduzo —,
sou o tapa do silêncio no meu ouvido;
o som parado no ar e mudo.Eu sou o que dentro de si próprio caminha;
o que se leva a crer e ao mesmo tempo duvida;
a comida que está retida na saliva
e que na falta de si mesma, se mastiga.Sou fuga com data e horário, me alcançaram;
o duelo em que ninguém estava indo;
o até-que-enfim dos que aguardavam;
o fogo de sábado, a cinza de domingo.Sou eternidade de uma tarefa já cumprida;
a imagem que engravida o olho.
Começo de onde morro:
meu fim acaba com vida. -
(C G D A C G D)
O homem perdido em casa
A geladeira plantada na sala
Sobe a escada até o chão
Guarda a insônia dentro do colchãoO homem exibido de máscara
Parado em volta da praça
Aposta num esporte de azar
Faz esforço para descansarO homem fugindo a trabalho
Morando dentro do seu carro
De castigo no ônibus escolar
Perde tempo para se encontrarO homem na festa amarrado
Marcando as cartas do baralho
Vem dormir aqui dentro onde ninguém vê
Vende o ingresso usado pra vocêSer rico de coisas que não se pode comprar
Agir como já amasse é começar a amar
Querer sempre pensar o melhor de alguém
Sair em si e desejar o bemO homem bem informado
Que não sabe o próprio aniversário
Transmite notícias suas ao jornal
É incrível quando tudo está normalO homem que não tem cultura
Cinema escrito numa partitura
Cultiva flores em um sintetizador
Ensina sobre a vida ao professor -
Acordo sem meus sentidos.
Todo dia nasce pra mim um novo sol proibido.
Uma manhã esperançosa bate à porta
E eu não atendo, embora ainda esteja vivo.Os dias encheram minha carteira de nadas.
Os anos se passaram como um monte de gelo queimando.
A cidade toda goza e vibra à minha volta,
Mas sequer consigo encontrar as chaves de casa.Quantos projetos e desejos já me povoaram…
Os sonhos me deram as costas
E eu nem vi quando me abandonaram.Vou vivendo agarrado aos meus instintos.
Recebo a conta do asilo onde internei a minha alma.
As pessoas a quem machuquei estão partindo,
E os meus pedidos de desculpa já não valem nada.Durmo à luz de um sono
Que não traz descanso nem conforto.
Um silêncio vívido acende meus olhos.
Ouço as batidas do meu coração morto. -
(G B D)
Nem sei mais o que é ser revoltado
Por onde passa o gado passa o revolucionário
Até o que não estava à venda já foi compradoOs mocinhos agora tocam no Sepultura
O governo manda na contracultura
A Galeria do Rock virou seção eleitoral
De tanto cuidar da saúde fiquei malO que eu devo fazer?
O que eu posso fazer?
Se eu preciso me vender no canalQuando eu quis discordar me enquadrei
Saí de casa lutar e apanhei
Ai minha arte não choca mais ninguémDigo que todo mundo está errado
Mas pra ser rebelde ganho até salário
Que bonito o exemplo do João Gordo
É preciso coragem pra concordar sempre com os outrosO que eu devo fazer?
O que eu posso fazer?
Se eu preciso me vender na tvO que eu devo fazer?
O que eu posso fazer?
Vou me oferecer pra vocêEssa vida anarquista só me prende mais
O lance é fugir de casa e ir morar com os meus pais
Mas por favor mamãe não me põe no balé
Não vou aguentar os calos nos meus pésRespeito aos políticos!
Respeito aos políticos!
Respeito aos políticos!
Respeito aos políticos!Música: Banda VHF Letra/Interpretação: Ricardo Carlin
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Ah, que a minha grande alegria (e digo de todo esse mundo mesmo, por toda a compridez da vida) — desde o tempo que já passei envolvido tentando me desenlear dos perigos (pelos dias em que, acuado entre céus azuis e límpidos e chuvas abundantes e cinzas, mais um turno se enterrava e uma nova madrugada se abria) às horas de folga em que esquecia dos abismos e me desprendia (mesmo estando os olhos a sorver em seus poros uma cor nova e outros sabores na língua despontarem feito uma aurora; mesmo estando eu inteligível de todos os sentidos, com meu salário no bolso a comprar badulaques para o espírito) — a minha grande alegria — mas ainda digo: é por infinito de jorro que não estanca, pela avenida que a vida asfalta e eu vou dirigindo, por campos que cavalos desencilhados se alastram e vão das transparências que brilham às reticências da geometria, desde o solado líquido da floresta amazônica ao azul que farroupilha o céu do pampa — a minha grande alegria, eu estava dizendo, é contemplar um pé de manga!