A estrada está chamando há muitas horas As traia já tão arrumada na boroca Faz tempo que nós combinamo a pescaria Demorou quase um ano mas até que enfim chegou o dia
Pontes e cancelas que cantam quando o carro passa Partindo da cidade rumo à fazenda e à mata Uma vaca cruzou a cerca e agora Acompanha a gente até não mais dar conta E o vô lembrou da época dos bailes Do tempo que na roça tinha dança
Na chegada já começa a folia Tem que arrumar logo as vara e as linha O almoço vai sair em poucas horas E se não pegar peixe vai ter que trata uma galinha
A água abraça o barco como se fossem dois amigos Feito nossa parceria, de uma amizade antiga Tudo é boa sorte e harmonia Tem piau, tucunaré, mandi , corvina Também o que não falta é cerveja Já tão chamando Lagoa Bonita de Lagoa Beleza
(G6 F#m B7)
É tarde enfim
Mais uma vez a noite acabou
Só assim vamos embora
Até agora nada mudou
(G Bm F#m B7)
Continuamos os mesmos bêbados fantasmas
Desequilibrados, voltando pra casa
Em grupo de três, quatro, com um ou dois carros
Tragando os últimos cigarros
É tarde enfim Mais um sonho assassinado À noite não se chora o sangue derramado
(C7+ Ab° A6/9 F#m)
(Bm D)
(Em A)
Ou resolvemos voar
Ou recolhemos as asas
Contentes com o nosso lar
Quietos em nossa casa
Daqui alguns minutos o dia irá nascer As desordens do mundo já começaram a acordar Mas você não quer nem saber Você só quer dormir e apagar
Palmas, a santinha que todo mundo passou a mão. Tratada como muamba naquela Praça dos Girassóis, onde qualquer espertalhão abre sua pochete e compra só com o que tem dentro. A terra onde o aproveitador e o pistoleiro se casaram (o casal perfeito). Loteamento espoliado que um assessor do governo ganhou em troca de favor, depois dado a um agiota por uma dívida desonrada, o qual passou ao atravessador que repassou ao despachante de projetos de leis unilaterais, que vendeu ao caloteiro das pormenores coisas, que pagou à interposta pessoa em juramento de uma vantagem futura, que sempre quer saber se é hoje que a boquinha vai sair. “— é hoje que a boquinha vai sair?” Terra de chumbados do espírito, aguerridos às bolas do cofre popular, que rotineiramente acertam a loteria mesmo sem jogar. Calor demais. Terra em que os secretários, os administradores, os corretores, os advogados, os superintendentes, os assessores especiais, os contadores, os facilitadores (facilitadores!), nadam-se entre si, apoiando-se uns contra os outros pra chegar primeiro à licitação enxertada no gabinete do vereador, pela qual lápises, clipses e atlases defasados serão entregues a um colégio pubo em troca de milhares de reais. Cidade de calçadas vazadas à braquiária, de praças aborrecidas e desleixadas, onde a Organização Pelo Futuro (OPF) caça crianças e as leva para a sede do Fisco (são uns promissores riozinhos de dinheiro público que é preciso represar, não?). Dos favores sacados dentro da carteira virada em cédulas cheias de durex. Do suntuoso Palácio do Governador onde o aleijado financeiro não chega, murado por pilhas de ilicitudes que o auditor não viu, o escrivão deixou passar, o técnico não teve ciência, o juiz abdicou, o delegado desculpou, o fiscal embolsou, o promotor inimputou, o perito não terminou, o procurador não quis mexer, que o policial ajudou. Hospedaria onde prefeitos refestelam-se cada qual sobre seu próprio colchão de impostos, recostados tranquilos ao travesseiro como só quem escolhe as pessoas certas para vender graças consegue fazer. Lugar dum povo escorado ao bar de beira d’água, cujo ânimo foi trancado no guarda-volumes do boteco e a chave caiu dentro afora pela fossa da alma. Cidadão de Porcarianópolis Nenhuma do Tocantins; pessoa cujo patronímico está positivado no Código Penal; eleitor cabresteado ao carnê do lote financiado; habitante desde o futuro-nenhum de nome Taquaruçu ao não-tem-futuro chamado Taquaralto. Calor demais. Um lugar cujos dividendos turísticos são embolsados por deputadinhos e dados à própria família como se fossem balinhas jogadas pra cima. Terra que é desminhocadamente ácida ou artificialmente adoçada, onde as folhas são vermelhas, os frutos explodem e só dá leite de cacto. Cidade que produz senão promessas de resultados, miragens de realizações, decréscimos de rendimentos, pensamentos de ação, rascunhos de intenções. Fértil em obras inacabadas e igrejas desesperançadas. Onde o funcionário público serve a si mesmo e o empresário é encarregado do político que naquela cadeira escrita “patrão” está ali sentado. Cidade que só venta e quando não só venta só queima e quando não só queima só chove. Clima que ninguém suporta, mas a saída é longe e a vida de quem chegou não tem mais volta. Prédios que estão mais para espinhas amaduradas, lotes enlixados, passeios recendendo a pequi congelado, que entre a ânsia de uma rotatória à ânsia d’outra só há gastura, enfaro e debilidade. Ruas sem acolhimento, nomenclaturas mudas, quadras constrangidas, avenidas tonturantes, trânsito de gangrenas com acidentes a cada… nem esquina é esse diacho!, faixas de pedestres atropelados |l|a|d|o|a|l|a|d|o|. Calor insuportável. Onde os músicos costuram pra fora, os escritores o que sabem é chupar geladinha e os atores é representar que se adoram. Uma cultura de porta em porta nas secretarias estaduais vendida e que mais parece uma confissão de dívida. E o comércio, esses profissionais em vender vasilhas de mangas amoscadas, cujo todo mundo sempre está trabalhando contrariado, e tanto o dono quanto o funcionário têm cara de quem toca MPT ao violão com o dedinho da mão direita levantado. Palmas, na manhã do teu nascer e já esse calor do diabo!
A violência — que nasce escondida como um trovão, que é antiquadamente prematura, que bafeja pelas clareiras das matas, pelo melado burocrático das cidades, nos corações que param ou que, de repente, palpitam, nos caminhos dos espíritos e dos instintos; a violência, havida muito antes, estrutura da vida, energia placêntica, expiração líquida, metida nas entranhas das coisas mortas e vivas — fez mais uma vítima.
Morre o corpo, barriga voltada ao céu, olhando perdida para um branco cego, tatuado de preto, vermelho e mel. A morte já lhe fermenta os ouvidos sensíveis. De súbito, a mudez é o que lhe vive, a solidão de sua vida, música escrita e nunca interpretada, trilha obscura, história insondada, carne ígnea, como um caminhar sobre um chão d’água.
Seu resto de existência agora incomoda, soca as pernas ao alto, sovando os fluídos do tórax. Sofre o assassínio, o recuo da língua num jorro de linfa morna e agonia. Esse resto de corpo lívido, resto de exílio, que sobre si existe como um peso frígido, propaga-se em dores pelo dorso, cegando seu coração aos poucos.
Ao mundo, lega uma morada simples, os rastros de uma descendência que sob outros passos serão apagados. Deixa uma história que, pelo menos, algum deus viu, sobrevivente aos vizinhos da cidade, vencendo os sonhos violentos que afloram e os atos de violência refreados.
Lhe dói não a saudade, nem a lembrança, mas o suposto para-nada que fica enquanto tudo vai, que é como subir nas próprias costas e se montar a cavalo, uma comida que você não come, mas a genitora coloca no seu prato, história que é só uma pegada secretada, escama de espírito que vai para a fornalha.
Assim, morre sozinha, entre glóbulos de manteiga e vapores de benzinas, a barata na cozinha.