
Visto de lado, o Morro da Tartaruga parece um mocó.
Ali, a cidade — Palmas, Tocantins — não se permite avançar. Deixa que as árvores aproveitem o trânsito delas, paradas; e que atletas, entretidos e descuidados façam suas atividades ao curso da natureza. Há trilhas, estradões, quedas d´água; distâncias vestidas de chegadas e partidas: a subida do Lobo Guará; a Trilha das Pedras, da Vovozinha, o Tamanduá; lá, a Cachoeira Valadares; aqui, a Trilha da Represa e a da Meia-noite; bem acima, a Cachoeira da Janela, a do Lajeirinho, o Mirante dos Parapentes; à esquerda, o Morro do Cristo e o início da Área de Proteção Ambiental Serra do Lajeado; além de vários outros não mencionados, ainda não nominados, ou a serem descobertos.
Dos circuitos mais conhecidos é o do Morro da Tartaruga, com início no Clube de Tiro. Para chegar ao local, parte-se do posto do trevo, onde termina o asfalto. São dois quilômetros de estrada de terra, pontilhados, aqui e ali, por casas e chácaras dos dois lados.
Do Clube de Tiro, mais um quilômetro, e começa o Cidão (como se apelidou a subida da estrada, que começa no sopé do morro). À esquerda, a Tartaruga curia os quem-vêm-lá. Subido um tanto, começa a trilha trilha-mesma que vai ao topo do morro. A elevação, tímida a princípio, aos poucos se verticaliza, e quanto mais indo andando, parece mais é que se vem voltando.
Pelos dois terços da subida, pode-se parar e descansar em uma grande pedra, já que o restante é bem mais íngreme, tanto que está lá uma corda para se ajudar com os braços, embora tenha os que dizem: “Não é preciso, basta resolver primeiro o que está dentro dos parênteses.” — Como é isso? — Reticências seguidas de ponto…. — Preocupou-se tanto com detalhes e nem percebeu que chegou ao topo — Reacalme-se.
Para quem está de frente à cidade, a oeste, o mirante localiza-se à esquerda, aonde vamos — vocês não vieram para tirar uma foto? Depois, retorna-se para ir até à “cabeça”, sentido norte: segue um bastante, desce um tanto, sobe mais um pouco. Dali só resta seguir pela face oeste do morro rumo ao ponto de partida.
Lá embaixo, em meio ao cerrado, já não se enxerga a cidade, mas buritizeiros, pés de murici, de mangaba, flores que cheiram a mato e frutas que respingam das árvores; um córrego que só brota na época da chuva, pedras salpicadas e desculturadas; e até uma rampa calçada de tijolos (um trecho já utilizado como pista de bicicleta) — os paraísos modernos são como terrários: ecossistemas enclausurados cercados de asfalto.
Neste microambiente percorremos quase meia légua (é quanto?). A descida termina, o terreno se aplaina e, se são as épocas, a água empoça o capim. As cercas das chácaras se achegam; vai-se percorrendo ao lado até que é preciso atravessar e sair — mistério, porque ninguém havia entrado. Após quase mil metros, está o Clube de Tiro. No total, sete quilômetros. Desligue seu relógio e vá embora.
Para essas coisas todas há até grupos organizados, como é o Trilhas do Lajeado®. Reunido há algum tempo, já firmou tradição nas trilhas, corridas, exploração de mata — e de mesas de bar. “Do Lajeado” porque é assim chamado o cordão de serra que, do distrito de São João, segue até Taquaralto, chega a Palmas, e parte à cidade de mesmo nome, a cinquenta quilômetros.
Às quartas-feiras, 5h30 da manhã, é o treino mais importante, justamente o circuito da Tartaruga. É indeclinável. A hora é exata e pesa uma tonelada: atrasou, morra… corra, quisemos dizer.
Janair, Buk, Lucas e Ronaldo já estão ali, porque o dia é agora. Conversam, apertam os tênis, verificam quem informou que ia, se chegou, e quem não deu notícia. Afinal, ligam o GPS para marcar distâncias, confirmam que já são cinco e meia e partem imediatamente.
O dia só irá clarear daqui a meia hora, o primeiro quilômetro é de estrada escura. À margem esquerda, a primeira casa, onde, desentendidos, cachorros latem à aproximação das pessoas, mas não ousam conferir-lhes os calcanhares. Mais um pouco, também à esquerda, já a última chácara — com sua porteira vistosa, que sustenta uma grande placa de madeira grafiosamente entalhada com o nome da propriedade, bem ao pé do Cidão.
Começa a subida. Cinquenta metros à direita, a entrada do Lobo Guará — nunca se sabe quem batiza os lugares —, trilha que segue, a tantos ou poucos, paralela à estrada. Inicia-se com uma curta e leve descida que lembra mata tropical — árvores compridas, ar sombreado e húmido—, apenas para subir logo após, em degraus que as raízes e as pedras naturalmente vão formando.
Em sortidos espaços, pequenos planos — enquanto as pernas trabalham, os pulmões descansam. A última subida, cheia de pedras cangas bulbosas, termina em uma pequena planície, como um tapete de estrada estendido. O relógio marca o segundo quilômetro justíssimo, que o atleta recolhe como uma medalha, enquanto prossegue sem novas altitudes. Pelo contrário, depois daquela curva à esquerda, ali na frente, tem início uma descidinha bem ajeitada — mas de pedriscos soltos e desníveis ilógicos —, cujo final é na imponente estrada do Cidão que, à direita, continua ainda a subir, e, à esquerda — onde viramos —, revela uma das paisagens mais belas do percurso: a do Morro da Tartaruga em toda sua inteireza, plantado exatamente no meio da estrada, para fotografias e suspiros.
Cerca de trezentos metros — agora, sim — começa a subida do morro, local considerado por aqueles, os Tais, como a largada propriamente dita, pois até então “foi só um aquecimento”.
Aqui, Janair, sempre um dos primeiros, dessa vez estava em último lugar da fila, porque não havia terminado de contar um causo de quando trabalhava em Minas Gerais, com a perna esquerda no chão e a direita no ar, prestes a pisá-la no centímetro um da trilha. Assim que o fez, a estrada que acabara de percorrer transmudou-se em cerrado brusco, de árvores anciãs, virguladas e &. Sem som, sem rumorejar — um relâmpago mudo.
Ao se voltar para trás, não se via mais o caminho inúmeras vezes patrulhado — sumira tanto! Lucas tinha parado de seguir porque teimava em ligar uma caixinha de som, usada presa ao seu colete de hidratação, recebida um dia antes de algum site chinês, pelo qual comprara. Nesse ruidar e conectar, foi o primeiro a perceber a mudança. Sucedeu-lhe uma explosão mental de pavores que contém a palavra “susto”. Seus membros oscilaram sobre o apoio dos pés, as batidas do coração se emendaram, e ele grunhiu solto. Os demais ouviram o som ferido de suas cordas vocais, mistura de interjeição estrangeira com onomatopeia animal, mas antes mesmo que vissem o sucedido, sentiram a friagem da nova mata a lhes barracar.
Como já tivessem encetado a marcha, a reação foi continuá-la imediatamente, para se desfazerem daquele feitiço.
A subida atinge quatrocentos metros com acentuado grau de elevação. Na altura de dois terços, como mencionado, há um pequeno “retiro”. Foi aí que pararam, até por necessidade, dado o esforço.
Sobrelevados da cidade, olhavam estarrecidos. Ouviram então um som ferrugento vindo do céu, enquanto sob seus pés germinava uma sombra grande como um caminhão, que era de um pássaro (caminhão com asas?), singrando rumo à serra.
Como proteção, restava ir até o topo. Buk foi na frente, mas notou que havia agora desenhos nas paredezinhas em torno da trilha. Refugou a apreciação de tais obras artísticas e, um minuto depois, já estava em cima do morro.
Ronaldo, que nesta debandada havia ficado por último, não só viu as pinturas como também pessoas a se esconder na extremidade esquerda do monte. Arrumou os olhos e percebeu que vestiam trajes quase nenhum, os cabelos esvoaçados, amedrontadas tanto quanto ele.
— Vocês viram aquelas pessoas? Parece a Guerra do Fogo.
— Que pessoas?
— Parece o quê?
— Eu vi um pássaro?
— Corre, galera!
— Que mata é essa?
— O filme.
Não havia diálogo, todos gritavam juntos — ou as vozes eram apenas na cabeça de Ronaldo. Nisso, já estavam automaticamente lá em cima. A esponjosa floresta abaixo e o céu azulejado por cima pareciam alimentar-se um do outro. A fuga das estradas, o desarquitetar das casas, os trechos apagados, tudo agora era apenas uma existência subentendida.
No horizonte, pássaros paquidérmicos emitiam rasantes. Havia lá embaixo barulhos devagares, como passos do qual ouvimos apenas a pegada. Seriam onças? Quem pergunta isso sequer chegou ao nível da ignorância — diria o piadista.
— Nunca na vida que lá é um ***, cara! Nem aquele *** que voa, bicho! — disse Lucas, tentando desligar seu aparelho de som, que agora só chiava.
— Não tem internet, nem sinal de celular — observou Janair.
— Vamos vazar! — instigou Buk.
Falavam tremendo ossos que sequer estavam lá para isso.
Antes que começassem a correr, viram, sob seus pés e sem qualquer transição de tempo, um caminho tão bem-acabado quanto de alumínio escorrido, com vários segure-aqui e daqui-não-passe, que se estendia por todo o sentido longitudinal do morro, desde o mirante na extrema esquerda até a descida do lado oposto — coisa miraculosa, susto novo.
Nesse estremecer, ouviram chamar, achegando-se mais perto, alguém regendo-os que andassem, não deviam estar ali parados. Era um robozinho de gente, feito de cristal plástico. Parecia dar ordens, embora estivesse apenas pedindo — à frente dos quatro rostos estupefatos, cada qual um esgar diferente — que o seguissem: estava na hora.
A arte, a imaginação, a fantasia, nada disso supera o absurdo da realidade. Acredita-se que a ficção seja o mundo da liberdade, onde as amarras dos fatos se soltam e é possível ser inédito. Mas nem mesmo o roteirista dos sonhos supera, em engenharia e enredo, o artífice que constrói o real.
Assim, os personagens desta verídica história, por mais assombrosa lhes fosse a verdade, deixaram-se convencer pelo androide, tão efusivo como um mestre de cerimônias — um guia turístico, de fato.
Seguiram-no até o mirante. A trilha continha avisos 3D luminosos, totens eletrônicos que vendiam informação e doavam doces, alto-falantes de árvores, espumas de ar para caminhada, teto fumê eletromagnético, sopradores sensoriais — a cada passo, algo novo, feito para confortar o visitante.
— Os senhores se atrasaram, e me preocupei que estivessem perdidos — explicava o guia. — Por isso a minha apreensão. Venham, estamos chegando ao mirante do Morro do Transistor.
— Morro do Transistor? — exclamaram os recém-turistas, a despeito do ponto de interrogação.
Não houve explicação. No ritmo elétrico do deslumbramento, chegaram a uma plataforma pela qual se descia ao nível do mirante, quatro metros abaixo, lugar em que dezenas de vezes haviam parado para tirar a primeira foto do treino.
Lá embaixo, onde outrora havia poucas chácaras, neste momento existia uma cidade, mas como que dissolvida em metais translúcidos, neons e LEDs multicores. Um mundo em total contraste com o que há pouco tinham visto: antes, toda uma selvageria; agora, sintetismo e estruturação.
Nada foi pensado ou refletido, mas houve como que um engolimento pelos sentidos. Os sobressaltos do espírito misturaram-se às ânsias do corpo, e disso resultou um só mando de sobrevivência: partir — de novo.
Foi quando o som de Lucas começou a tocar uma música calma, um continuum manso de águas. O guia lhes falava, mas não o escutavam.
— Corre, moçada! — gritou Buk para os outros três, que, isso sim, ouviram muito bem.
Percorreram uns seiscentos metros até o “pescoço” da tartaruga. Quando chegaram, já não havia resquícios de passados ou futuros, e, a bem do presente, nem de cidade. Agora lá embaixo era todo um mar lacustre, um espelho d’água, surgido como não se sabe/nem se viu.
Porque já tinham descido ao dito pescoço, seguiram Buk que, num abalo, corria para subir então à “cabeça”, o que lhes parecia melhor do que voltar àquele futurismo fantasmagórico, ou do que descer às águas.
De toda sorte, enquanto os pensamentos lhes rodeassem os nervos, estavam a salvo. Com a adrenalina em livre curso, estavam presentes. Se os choques n’alma estavam ali, é porque estavam vivos. E vivo é sempre ponto alguma coisa, peso, resistência, e, portanto, valorativo — quer dizer que, poxa, poderiam (não) estar pior!
A água subira ao ponto de isolar os dois pontos culminantes da Tartaruga, mas estagnou. Via-se ao longe os morros de Taquaralto e, além, a serra do São João. Nada mais. O guia robô, mesmo, sumira. Os quatro se embandeiraram no chão e estancaram.
Não havia tristeza porque não havia verossimilhança na situação. Até as pedras sobre as quais se sentaram, e o capim que lhes roçava as pernas, pareciam inconciliáveis com as regras naturais. Prescindia-se das consequências que os fatos costumam trazer.
Era como se os acontecimentos não tivessem lastro de realidade, mas isso não os impedia de vivê-los, assim como usamos o dinheiro, que é uma ficção, e não o ouro, que o sustenta. Utilizassem o que tinham aos sentidos. Não tinham ouro, mas tinham dinheiro.
Notaram que a data marcada no telefone celular havia mudado. O horário também já não correspondia ao tempo transcorrido desde o início da trilha.
— O tempo está mudando — disse Ronaldo. — A hora estava diferente quando olhei há pouco.
— Quando a gente subiu o morro e a floresta apareceu, poderia ser tipo um passado. Depois lá no alto do morro era um futuro, e agora parece já um terceiro tempo — respondeu Janair.
— Isso só pode ser coisa de extraterrestre, meu amigo — falou Lucas.
— Isso só pode ser é loucura, nego véio — emendou Buk.
Enquanto conversavam, reviravam os badulaques: lanternas, garrafas d’água, bolsas de hidratação, chaves e a caixa de som de Lucas, que ele ligou para testar e logo desligou. Andaram às voltas, pensaram às voltas, deram-se forças — nada aconteceu. Somente, de súbito, a água sumiu, e tudo voltou a uma normalidade qualquer. Como se nada tivesse acontecido — foi isso o que se disse.
— É coisa de ET, não tem outra explicação — gritou Lucas.
— Não sei de nada — berrou, pela metade, Buk — só sei é que vou chispar. Bora, galera!
Quilômetro quatro é onde se encontram agora. Percorreram cerca de trezentos metros até a Pedra do Sapo. Descida mais gravidade e canelas = velocidade.
O ambiente mudara, mas as direções não se subvertem assim: sabiam que a rota se estendia rumo ao rio Tocantins, o qual, como puderam ver, agora estava em curso.
Ainda assim, o trajeto era dificultado pela juquira, recrudescida. Ronaldo, como um aríete, pôs-se à frente do grupo e desceu, partindo a quiçaça, arrastando tudo, até mais ou menos a beirada do riachinho, que corre água na época da chuva e seca na da seca, encaixando o substantivo ao verbo. Não é que corria agora? Época de estio! E como, aquela pastagem ao redor, aquelas vacas, e até um cavalo muito guapo? E tropeiros feito aqueles, lá longe? Não é costume por estas bandas — o centro do país é o lugar mais distante do Brasil. À revelia daquela nova surpresa — se é que há surpresas velhas —, os quatro, agora viajantes, continuavam, a fim de terminar a descida.
— A gente tem que tocar para lá — disse Buk.
— Não é possível que estamos perdidos aqui. Essa região é um ovo. De tartaruga! — exclamou Ronaldo.
— Estamos perdidos, sim, mas não no espaço. Estamos perdidos no tempo. É assim que os alienígenas manipulam as presas — disse Lucas.
— Se eu fosse pensar no que vou falar, não falaria, por isso que falo sem pensar mesmo — emendou Janair —: se tem gado e peão por aqui, pelo menos a gente não está num tempo tão longe assim.
— Olha o celular aí, não tem nada? — perguntou Buk.
— Esse teu som não pega rádio, não, Lucas? — indagou Janair — Às vezes tem frequência que pode receber, tipo AM.
Lucas ligou o aparelho, mas não captou nada além de buracos sonoros. Como iam, alcançaram o plano, e a estrada apareceu.
Provavelmente, você consegue correr os dois quilômetros que restam, de estrada sem subida, em quinze minutos. Só não haverá jeito se, faltando um quilômetro, surgir um prédio à sua frente. Ainda mais se este for tão incomum que, além da aparição por si só, acarrete todo um desentendimento mental — pois, só para interpretar o que os olhos viram, você já se frangalhou.
— Não é possível isso, meu Deus! — bradou Ronaldo.
— São os ETs, estou falando. Olha lá aquilo voando! — disse Lucas.
Nisso, os celulares começaram a captar sinais diversos e a emitir notificações. A caixa de som de Lucas fez um barulho novo. Isso chamou a atenção de Buk, que disse:
— É coisa desse teu sonzinho aí, Lucas, pode reparar! Os chineses estão inventando tudo quanto é trem. Pra fazer uns negócios que deixa a gente maluco, é facinho. Isso se não descobriram logo foi um jeito de viajar no tempo.
Atrás deles, campos gravitacionais serviam à rodagem de veículos, e robôs esféricos recolhiam barulhos usados da atmosfera. Os quatro correram para dar a volta ao prédio. O celular de Ronaldo esquentou e queimou no bolso, e ele o lançou longe. O som de Lucas continuava a soar estranhezas, e também aquentou. Com raiva, ele o arremessou ao chão, quebrando-o.
Nesse momento, viram o Clube de Tiro a duzentos metros. Atrás deles, tudo tinha sumido e voltado ao normal.
Seus carros e motos, como os haviam deixado. Todo o mundo que conheciam estava redivivo e conforme. Até mesmo o dia retornara à noite.
Janair olhou seu celular. Marcava exatamente a mesma data e horário de quando partiram: quarta-feira, cinco e meia da manhã.
— É dia de Tartaruga. Nosso compromisso — disse.
— Vamos! — responderam os outros.